(revisão de texto de 18 maio de 2010)
Olhou pela janela, absorto no horizonte, deixando vaguear por lá a falta de inspiração. Pressionou duas vezes o “enter” num tique hesitante de quem ainda procura o texto de partida. Desta vez, a pequena faísca que deveria fazer correr agitadamente os dedos pelo teclado tardava. O seu olhar alternava, irrequieto, entre o ecrã em branco e a capa encerada do livro sobre a mesa que olhava com especial atenção. Por fim, ainda vacilante, num ritmo lento e batucado, como se quisesse ver nascer na tela cada caractére, um por um, como se cada letra merecesse uma atenção solene, deixou, lacónico, um f…i…c…o…a…q…u…i
Lá ao fundo, na assoalhada que confinava com a sala onde acabara de fechar a tampa do portátil, a sua família debruçava-se entusiasticamente sobre um qualquer afazer que tinha espraiado sobre a mesa de jantar. Deixou-se enlear por breves instantes num enternecimento de lágrimas. Não era assim que queria sentir-se e por isso interrompeu-se, marcial para consigo, erguendo-se e ajeitando a roupa em redor da cintura. Com as duas mãos – era um tomo pesado – agarrou por fim o “Dom Quixote ” que tinha à sua frente. Abriu-o pelo meio e começou a desfolhá-lo com agitação. Sabia exactamente em qual dos seus 126 capítulos encontraria o parágrafo que escolhera e apesar da generosa espessura daquela obra não demorou a descobri-lo.
A frase que, depois de aturada pesquisa, meses a fio, havia escolhido, estava agora diante dos seus olhos. Sabia-a de cor, naturalmente. Não apenas as palavras e o sentido que estas lhe davam, mas também os ritmos e os sons soletrados e era tudo isso que o fizera tomar este trecho para seu pardieiro. Como que a ancorá-la, fincava-a com o indicador enquanto voltava a levantar o olhar. Sorriu-lhes, aos seus, uma última vez, de lá do fundo e depois mergulhou exactamente antes do ponto final do parágrafo que escolhera para o acolher! O livro fechou-se com estrondo, por impulso da sua vontade, mas até isso passou despercebido à família. Há muito que se haviam habituado a conceder-lhe a quase imaterialidade em que vivia mergulhado nesse mundo paralelo da escrita e qualquer sinal da sua presença tornara-se inconspícuo. Mais tarde, quando o procurassem e encontrassem as suas roupas caídas no chão e apesar do insólito de as verem pigmentadas das letras soltas que se haviam desprendido do texto quando nele entrara, nem então achariam isso demasiado estranho, nesse inverosímil a que os habituara.
Um dia alguém iria voltar a desembainhar a obra de Cervantes e, rolando-lhe apressadamente o espesso das páginas com os dedos lambidos, quiçá acabaria por passar pelo parágrafo remoto para onde se exilara. Teria assim a oportunidade para um breve vislumbre, suficiente, do mundo cá fora, para sentir a mornidão do sol sobre a folha onde agora vivia – nenhum outro material absorve mais tépida e suavemente o sol que um bom papel gramado, assim achava ele. Um momento de interregno certamente tão saboroso como aqueles em que, quando ainda vivia aprisionado num corpo inútil, chegava a casa, desprendia a gravata e viajava pelas suas leituras. Ainda que agora ele fosse o livro e por isso essa comoção deixasse de fazer sentido.
Não fora de ânimo leve que decidira transladar-se para esse universo que acabara de escolher (*) e isso tão mais determinante e irrevogável que simplesmente morrer. Mas não lhe sobravam já dúvidas sobre essa forma de eternidade que escolhera. Jazeria nessa soberba planície literária, caminharia eternamente pelas terras de La Mancha e desfrutaria infinitamente de cada pedaço mágico da mais notável inspiração humana. Sim – assentia de novo para consigo, encostado à vírgula do terceiro parágrafo onde encontrava a doce Dulcineia em vias de se entregar ao seu Cavaleiro da Triste Figura – ali poderia finalmente respirar a perenidade da sua solidão.
(*) Cervantes deu a seguinte definição à sua própria obra: “orden desordenada (…) de manera que el arte, imitando à la Naturaleza, parece que allí la vence”